quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Gnus ao vivo

A manhã prometia, o sol surgira ás seis e quinze mais ou menos brilhando sobre a tchimpaca enorme e vermelho no seu despontar, um pouco depois da nossa hora habitual de acordar, claro que o primeiro café da manhã já cheirava de longe no seu aroma inconfundível, e como que arrastados no ar saímos para a varanda das traseiras, e neste espaço debaixo de uma enorme mandioqueira o nosso cozinheiro Palanca de seu nome, já preparava na velha cafeteira de esmalte o divino néctar que nos despertava os sentidos, o frugal desjejum com uns bolitos secos que a minha mãe fazia, cada um com sua caneca, desfrutando juntos os mil paladares dos sons da vida e dos cheiros do mato vindos a cerca de cem metros da tchimpaca onde as perdizes, rolas, codornizes, capotas e tantas outras aves que se dessedentavam e se ensaiavam em coro para mais um dia, e nós colocando em ordem os pensamentos do que iria decorrer nas horas seguintes.
Sob a mandioqueira, numa mesa executada de um tronco de mutiate, iríamos ter dentro de uma hora um pequeno-almoço bastante aconchegante, entre bifes de olongo e uns ovos estrelados, café, leite, natas e pão caseiro preparava-nos para uma corrida com a fauna viva no seu habitat.
O primeiro café era para acordar e dar a vontade de fumar um cigarro, e dar uma volta de jipe na cercania verificar os estábulos de onde o gado começava a sair para o pasto.
A vida no seu pleno ciclo corria de acordo com o avançar lento da manhã sem pressas, onde tudo tem lugar na sua hora certa e não se corre sempre, só quando queremos e temos de correr, como aconteceu.

Depois de uma rápida vistoria ao gado preparamo-nos então para a segunda etapa, verificar os utensílios de apoio logístico composto de garrafa térmica com café, a célebre latinha com fatias de bolo preto, e os sacos de lona com água sempre fresca que ficavam pendurados nas portas do jipe, mais as armas ajustadas nos seus alforges e respectivas munições, e não esquecer que os cães já adivinhavam o movimento pela sua inquietação e ladrar constante de satisfação para uma saída que desejavam há muito tempo, o abanar das suas caudas e saltar para a carroçaria do jipe era a clara confirmação dos seus desejos. Mas desta vez não era possível levá-los, ficara prometido que numa saída nocturna iriam e assim mais tarde também aconteceu e será narrada a aventura de uma boxer.

A partida estava programada para dali a pouco tempo e fizemo-nos ao programa ao tomarmos rumo a nascente em direcção ao rio Cunene, não foram necessários muitos quilómetros andados em carro, mas o suficiente para que ficássemos isolados de qualquer vestígio de civilização, pois estávamos em pleno mato rodeados de mutiates, alguns munheres, capim e em terreno chamado de barro preto, zona de baixio por onde corria água na época da chuva formando mulolas até chegar ao rio, zona preferencial das manadas de gnus, e impalas, pois a vegetação nesta zona ainda era de alguma quantidade e qualidade para a sua alimentação até á chegada das chuvas e renovação das pastagens.

Apeados do nosso Land Rover a caminhada a seguir prometia, primeiro e em silêncio e cada um carregando o equipamento que lhe competia, era dada pelo líder a introdução a pequenas indicações de como agir perante o inesperado, aparecimento de cobras ou outra peça que não a desejada e como as evitar sem alarmes, e o que se esperava de cada um de nós num compromisso de equipe era o silêncio absoluto, a visibilidade entre nós, e fundamental a pesquisa de direcção do vento e caminhar o que fosse necessário para contornar a presa para que esta não nos detectasse pelo cheiro do “homem”.

Decorrido algum tempo de caminhada e algum desânimo pela ausência do que esperávamos ver, eis que surge de repente uma mancha de cinzenta a negro fumo (Gnus) entre o castanho e verde da vegetação, primeiro difusa e com alguma poeira á mistura provocada os inquietos animais, aquietamo-nos rapidamente e agachados á altura do capim enquanto o meu pai traçara os passos seguintes a executar, ele seguiria com os nossos convidados para que lhes fosse dada a oportunidade de abater uma ou duas peças, e nós ficaríamos naquele local para uma segunda chance face á probabilidade dos animais correrem para aquela zona pois estávamos com vento a nosso favor, no fundo indetectáveis quer pela fraca visibilidade quer pelo vento contrário.
Presumia-se que ao ser efectuado o cerco nestas condições e ao primeiro tiro, a manada de gnus rebentasse num estouro em galope desenfreado pela mulola fora, vindo a passar á nossa frente onde poderíamos consumar mais um abate.
Mas nem sempre tudo é como se pretende e a natureza é imprevisível e nós erramos no pressuposto, após o primeiro tiro realmente caiu um animal, mas os outros alertados pelo estampido correram na direcção contrária para poente, colocando-se com o vento a favor deles e o que nos obrigou a uma dura caminhada árdua de mais de hora e meia tentando circundar novamente a manada, o que de facto conseguimos e nesta oportunidade conseguimos mais dois abates em que um único tiro seccionou por capricho as pernas traseiras de um animal e as do lado direito de outro, sendo de seguida consumado os seus abates.

É dada por terminada a caçada por três peças, porém havia que as localizar e marcar caminho de modo a que o jipe lá chegasse para as carregar, mais longas caminhadas a pé e a mim competiu-me esta responsabilidade assim como de abater as ultimas duas feridas.
Óbvio que um dos ajudantes do meu pai, o Chitumba, um Mu’Cuanhama de gema pessoa de um carácter invulgar me ajudou na orientação de regresso ao jipe e daqui mais fácil foi para mim chegar aos locais onde estavam as peças abatidas para carregar.

Olhando para as horas decorridas o tempo do almoço já passara há algum tempo e déramos conta que os nossos estômagos estavam vazios e roncando, mas nada que não fosse mais providencial que a garrafa térmica com café e fatias de bolo preto mais uns bolinhos secos, e ainda os cantis de lona com água fresca para nos aliviar. Regressados a casa cansados para um banho regenerador e uma refeição á base de carne seca assada, bifes, e pirão com leite azedo.
A noite com os seus sons característicos chegara tranquila e as conversas sobre o dia tiveram a nota alta no convívio que se seguiu.

Trinta anos antes estas cenas ou semelhantes foram de carro boer e a cavalo nos mesmos locais, eu não estava lá nessa época mas sei que o meu Pai as viveu intensamente, como gostaria de ter passado por isso e o que acabei de narrar foi um facto ao vivo em que eu fui parte integrante muito activa e ainda bem jovem nos anos 60.

SAM


Recordaria no melhor filme da minha vida.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem, caro Sérgio! Parabéns, prezada Andreia!

As inúmeras histórias que encheram o nosso quotidiano de há mais de trinta anos atrás fizeram parte dos nossos sonhos juvenis que a memória ainda retém. Por isso merecem ser contadas, resgatadas do esquecimento, como bem escreveu o escritor chileno, Luís Sepúlveda, "a palavra escrita é a grande depositária dos sonhos". De facto, em cada lembrança está um sonho inscrito e ao embebê-lo na escrita estamos a garantir que a nossa existência não tenha sido em vão.

Abraço grande,
Jorge Arrimar

Catarina Gerássimos disse...

Serginho!!

Fui lendo lentamente como era o tempo em Angola sem pressas, como me arrepiei, senti-me e viajei no tempo, o café na garrafa de termos, a mandioqueira, o matabicho a caçada, tudo tão real um filme verdadeiro e autêntico!!

Parabéns Andreia e Serginho, meu mano Caçula!!

Beijinhos para os dois e muitooooo Obrigadaaaaa!!!

Nicha

Unknown disse...

Serginho,

Tal como prometido, mas não por ser devido, antes com todo o gosto e prazer... cá estou. Com o deleite peculiar de quem sente com o coração e de quem vive pela imaginação através das suas palavras, da sua escrita cativante.
Não li ainda tudo, farei isso com tempo que me dê para saborear cada sílaba...

beijo grande e Bem Haja!

À Andreia os meus mais sinceros Parabéns... pelo Pai e pelo Orgulho nele.

Anónimo disse...

Sempre fui menina de cidade, mas também se vivência quando nos transportamos num conto bem contado. Parabéns!!
Abracinhos
Manela